A morte nos faz cair em seu alçapão, / É uma mão que nos agarra / E nunca mais nos solta. / A morte para todos faz capa escura, / E faz da terra uma toalha; / Sem distinção ela nos serve, / Põe os segredos a descoberto, / A morte liberta o escravo, / A morte submete rei e papa / E paga a cada um seu salário, / E devolve ao pobre o que ele perde / E toma do rico o que ele abocanha.
(Hélinand de Froidmont. Os Versos da Morte. Poema do século XII. São Paulo : Ateliê Editorial / Editora Imaginário, 1996. 50, vv. 361-372)

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Porque o defunto deixou a igreja: Origem dos cemitérios no século XVII

Aconteceu no mundo inteiro, um fenômeno curioso no final do século XVII. Por medida sanitária os sepultamentos passam a realizar-se em área aberta, nos chamados campos-santos ou cemitérios secularizados.


Túmulo do compositor Fréderic Chopin (1810-1849), no Cemitério Père-Lachaise de Paris, decorado com uma estátua da musa da música chorando, obra do escultor Auguste Clésinger, retratado em cartão postal do início do século XX. Imagem disponível no site http://www.bellecpa.com/cpa_paris/cpa_pere_lachaise.html?page=1 em 06/10/2009.


Por Beatrix Algrave
Postado em 12/11/2008 na
"Página da Beatrix: Arte, Cultura e Educação."


Isto já não era novidade, japoneses, chineses, judeus e outros povos já traziam tradicionalizada a inumação a “céu aberto”. Os protestantes também, em muitos países o faziam. A mudança afetou principalmente os povos de predominância católica. No Brasil o enterro fora da igreja era reservado aos não-católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, escravos e condenados, até que, por lei, inspirada na correlação que se fez entre a transmissão de doenças através dos miasmas concentrados nas naves e criptas das igrejas, se instalaram os campos de sepultamento ensolarados.


Esta a morte perfeita, nem lembranças, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso…
Lygia Telles (Venha ver o pôr-do-sol)


Um outro motivo, que embora não diga respeito a realidade brasileira merece ser citado, diz respeito a laicização do Estado e sua separação da Igreja. Um exemplo digno de nota é o caso do Pére Lachaise de Paris que, apesar de receber o nome de um padre católico, abriga tanto pessoas de várias religiões quanto não-religiosos, sendo um dos dos primeiros cemitérios laicos e também um dos mais famosos do mundo.

Portão de entrada do Cemitério Père-Lachaise de Paris, em 1909, conhecida como a Porta de "La Dhuis" na Avenida Père-Lachaise. No centro, ao fundo, detalhe da cúpula e chaminés do forno crematório. Cartão Postal do início do século XX. Imagem disponível no site http://www.bellecpa.com/cpa_paris/cpa_pere_lachaise.html?page=1 em 06/10/2009.

A urbanização acelerada e o crescimento das cidades é também uma importante razão para a criação dos cemitérios coletivos a céu aberto, visto que o crescimento populacional desenfreado não permitia mais o sepultamento em capelas e igrejas, que já não comportavam o aumento da demanda.

Numa primeira impressão o fato parece ter explicação simples, mas quando se atenta para o resultado ocorrido, sobre mais de um século, estudando-se o fantástico derrame de fortunas nas construções tumulárias pomposas, dos abastados de cada cidade, quando se verifica a diferença de comportamento entre a sepultura de igreja e a de construção livre arbitrada pela fantasia do usuário, e também quando se considera a história social e cultural do mesmo período, então se percebem outras razões no fenômeno. Não foi somente uma questão do ponto de vista higiênico, ou seja, uma razão metade prática e metade científica (e também política e social), da sociedade oitocentista. Se esta mudança acontecesse apenas por esse motivo, os cemitérios católicos em descampados teriam permanecido sóbrios e padronizados do mesmo modo que os erigidos por irmandades em mausoléus coletivos, ou como os de outras religiões.

A simplicidade dos padrões tradicionais e primitivos continuou caracterizando a sepultura coletiva enquanto o fausto e a arrogância da tumulária individual se desenvolveu espantosamente.

Portanto, a verdadeira razão da grande mudança de atitude e gosto, já existia há longos tempos no anseio de monumentalizar-se perante a comunidade. Era, e sempre foi, o desejo dos mais abastados, distinguir-se através de uma marca perene, de um objeto de consagração - o túmulo - pela atração de compara-se aos grandes personagens da história, sem a menor cerimônia, incluindo nesta leva os soberanos, os faraós, os reis, os papas e os príncipes, que mereceram sepulcros diferenciados dos demais.

Há de fato túmulos monumentais de papas de acordo com a pompa de cada época, contudo sempre integrados à construção da igreja. Há papas que não restaram por virtudes, e sim pela eventualidade do valor artístico, ou monumental de seus túmulos. De qualquer modo, erigia-se a igreja como bem público, integrada ao uso coletivo, e nela se fazia a sepultura do seu doador e benfeitor…

Entretanto em muitas igrejas, originalmente levantadas para serem o jazigo do doador, este descansa sob uma lápide que nem perturba o nível do chão.


Túmulos de Eloísa e Abelardo no Cemitério Père-Lachaise de Paris, retratados em cartão postal do início do século XX. Os célebres amantes do século XII ajudaram a promover o cemitério quando seus túmulos foram transferidos para lá em 1817. Imagem disponível no site http://www.bellecpa.com/cpa_paris/cpa_pere_lachaise.html?page=1 em 06/10/2009.

A arte tumulária varia com a data, acompanha cada estilo de época, e de região, e jamais sonega o caráter, a espiritualidade do meio em que ocorre. Sob tal prisma, isto é, tomando-se a arte tumulária como representativa desses atributos, podemos entender as estruturas sociais e culturais dos meios, mesmo quando tal se acha restrita a uma parcela da população. Aliás, tal restrição relaciona-se diretamente com o tipo de economia da sociedade, estando deste modo a arte cemiterial condicionada a fatores de caráter sociológico, econômico e cultural.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


FORGANES, Rosely. Os mortos que nunca descansam. In: Caminhos da Terra: Azul, Março de 1998, Ano 07, nº3, Edição 71, p. 66-71.

LANGALDE, Vincent de. Ésoterisme, Médiuns, Spirites du Père Lachaise. Paris: Vermet, Collection Cemetières de Paris et d’ailleurs, 1990.

SCAVONE, Míriam. Surpresas de bronze e mármore. In: Veja SP : Abril, 30 de out., 1996. p. 12-19.

VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Brasília: MEC-RJ, 1972.

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