A morte nos faz cair em seu alçapão, / É uma mão que nos agarra / E nunca mais nos solta. / A morte para todos faz capa escura, / E faz da terra uma toalha; / Sem distinção ela nos serve, / Põe os segredos a descoberto, / A morte liberta o escravo, / A morte submete rei e papa / E paga a cada um seu salário, / E devolve ao pobre o que ele perde / E toma do rico o que ele abocanha.
(Hélinand de Froidmont. Os Versos da Morte. Poema do século XII. São Paulo : Ateliê Editorial / Editora Imaginário, 1996. 50, vv. 361-372)

quarta-feira, 31 de março de 2010

A Vala Clandestina de Perus no Cemitério Dom Bosco (SP): memória dos anos de chumbo

Muro erguido como Memorial aos desaparecidos políticos sepultados no Cemitério de Perus, no local da vala clandestina, criado pela Ex-Prefeita de São Paulo Luiza Erundina e pela Comissão de Familiares de Presos Políticos Desaparecidos. Foto: Bruno Pedrozo, 20/11/2007. Imagem disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cemit%C3%A9rio_de_Perus.

Artigo publicado com o título original “Vala de Perus” no site do “Centro de Documentação Eremias Delizoicov” no “DOSSIÊ – Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil” [ http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=39&m=8 ]

Em 1990, no dia 4 de setembro, foi aberta a vala de Perus, localizada no cemitério Dom Bosco, na periferia da cidade de São Paulo. Lá foram encontradas 1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas dos esquadrões da morte. Seis presos políticos deveriam estar enterrados nesta vala, de acordo com os registros do cemitério: Dênis Antônio Casemiro, Dimas Casemiro, Flávio Carvalho Molina, Francisco José de Oliveira, Frederico Eduardo Mayr e Grenaldo de Jesus da Silva.

O cemitério Dom Bosco foi construído pela prefeitura de São Paulo, em 1971, na gestão de Paulo Maluf e, no início, recebia cadáveres de pessoas não identificadas, indigentes e vítimas da repressão política. Fazia parte de seu projeto original a implantação de um crematório, o que causou estranheza e suspeitas até da empreiteira chamada a construí-lo. Este projeto de cremação dos cadáveres de indigentes, do qual só se tem notícia através da memória dos sepultadores, foi abandonado em 1976. As ossadas exumadas em 1975 foram amontoadas no velório do cemitério e, em 1976, enterradas numa vala clandestina.

A família dos irmãos Iuri e Alex de Paula Xavier Pereira, após diversas tentativas para encontrar seus restos mortais em cemitérios da cidade de São Paulo, descobriu que Iuri estava enterrado no cemitério de Perus, quando do enterro de um tio seu neste mesmo cemitério em dezembro de 1973. Passado algum tempo, a família mostrou ao administrador do cemitério a notícia de jornal onde estava relatada a morte de Alex e indicava o nome falso utilizado por ele durante a clandestinidade, João Maria de Freitas. Assim, o administrador encontrou nos livros de registro do cemitério uma pessoa enterrada com aquele nome. Essa descoberta despertou os familiares para a utilização de identidade falsa para o sepultamento de militantes políticos assassinados.

Em junho de 1979, a irmã de Iuri e Alex, Iara Xavier Pereira, relatou essas informações aos familiares de mortos e desaparecidos políticos reunidos no III Encontro Nacional dos Movimentos de Anistia, no Rio de Janeiro. Ainda no mês de junho, alguns familiares foram ao cemitério de Perus e localizaram outros militantes mortos e enterrados sob identidade falsa como Gelson Reicher, enterrado com o nome de Emiliano Sessa, e Luís Eurico Tejera Lisbôa, enterrado como Nelson Bueno. Esses novos dados levaram outros familiares a iniciarem suas buscas em cemitérios a partir dos nomes falsos utilizados por seus parentes na clandestinidade.


VALA de Perus no Cemitério Dom Bosco em São Paulo. No local, em 1979, foi encontrado o corpo de Luiz Eurico Tejera Lisboa – companheiro de Suzana Lisboa -, sepultado com nome falso. Somente em 1990 é que a vala foi aberta, sendo localizadas mais de mil ossadas. Além de presos políticos, indigentes e vítimas do esquadrão da morte. “Carlos Cogoy”. Imagem disponível em http://www.3milenio.inf.br/95/_culturaedu95a.htm

Em julho de 1979, a família de Flávio Carvalho Molina, assassinado em 7 de novembro de 1971, soube de sua morte através de documentos anexados a um processo na 2ª Auditoria da Marinha, sem no entanto, jamais ter recebido alguma comunicação, mesmo que informal. Na documentação, a Auditoria é informada da morte de Flávio, cujo corpo havia sido enterrado como indigente no cemitério Dom Bosco, em Perus, com o nome falso de Álvaro Lopes Peralta, na cova n. 14, rua 11, quadra 2, gleba 1 e registro n. 3.054. Seus familiares tentaram exumar seus restos mortais, quando descobriram que os mesmos já haviam sido exumados em 1975 e reinumados em uma vala comum. Naquela ocasião, nada pôde ser feito devido à repressão política vigente no país.

Em 1990, o repórter Caco Barcellos, investigando a violência policial através de laudos necroscópicos do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, redescobre a vala clandestina e tal acontecimento alcança grande repercussão na imprensa. Em seguida, os familiares dos mortos e desaparecidos políticos obtêm o apoio da prefeita Luiza Erundina, que criou a Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus.

Os familiares exigiram a transferência das ossadas para o Departamento de Medicina Legal da UNICAMP, pois no IML/SP ainda atuavam médicos legistas que assinaram laudos falsos de presos políticos mortos em tortura. O diretor do IML, nessa época, Dr. José Antônio de Melo, assinou o laudo necroscópico de Manoel Fiel Filho, assassinado sob tortura no dia 16 de janeiro de 1976, no DOI-CODI/II Exército. Os familiares, o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV), a Anistia Internacional e a Americas Watch convidaram o Dr. Clyde Collins Snow e a Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) para colaborarem com o Departamento de Medicina Legal da UNICAMP na catalogação e identificação das ossadas encontradas na vala de Perus. No entanto, não puderam trabalhar nas pesquisas de identificação, pois a equipe de medicina legal da universidade não concordou com sua participação.

Entre 17 de setembro de 1990 e maio de 1991 instalou-se na Câmara Municipal de São Paulo uma CPI para investigar as irregularidades da vala de Perus. Em novembro de 1990 foi assinado o Convênio entre o Estado, a Prefeitura de São Paulo e a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), por um período de 1 ano, com o objetivo de identificar as ossadas. Neste período iniciou-se, também, o Inquérito Policial n. 10/90, na Seccional Oeste, presidido pelo Dr. Jair Cesário da Silva para apurar as responsabilidades pelo uso da vala clandestina. Em dezembro de 1990, as ossadas devidamente catalogadas e embaladas foram transferidas para o DML/UNICAMP. Até o final de 1992 obteve-se duas identificações de presos políticos cujos restos mortais estavam na vala clandestina: Dênis Antônio Casemiro, considerado desaparecido, e Frederico Eduardo Mayr.

O trabalho da Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus e da CPI estenderam seus trabalhos a todos os cemitérios da capital ou cidades vizinhas. Assim, outras ossadas foram encaminhadas ao DML/UNICAMP para investigação com fins de identificação. Do cemitério de Perus três esqueletos de covas individuais foram identificados como sendo os de Hélber José Gomes Goulart, Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Maria de Moraes Angel Jones. No mesmo cemitério, os esqueletos da cova onde estaria enterrado Hiroaki Torigoe e os de outra cova onde estaria Luís José da Cunha foram retirados e enviados para o DML/UNICAMP. Até hoje, nenhum resultado sobre a investigação foi divulgado.

Do Cemitério de Campo Grande, em São Paulo, identificou-se a ossada de Emanuel Bezerra dos Santos. Comprovou-se que José Maria Ferreira Araújo, morto em São Paulo, em 23 de setembro de 1970, foi sepultado no cemitério de Vila Formosa. Porém, mudanças na disposição de algumas quadras do mesmo impossibilitaram a localização dos restos mortais de José Maria. Algumas ossadas desse cemitério foram transferidas para a UNICAMP e, segundo seu Departamento de Medicina Legal, já teriam sido devolvidas ao cemitério, sem contudo, divulgar qualquer relatório a respeito.

Em 29 de abril de 1991 foram trazidos do cemitério de Xambioá, sul do Pará, dois esqueletos de supostos guerrilheiros do Araguaia. Um pertenceria a Francisco Manoel Chaves e o outro a Maria Lúcia Petit da Silva. Apenas o laudo de identificação de Maria Lúcia Petit da Silva foi entregue à família em 15 de maio de 1996. Às demais famílias foram entregues cópias de laudos de identificação em papel sem timbre da universidade e sem assinatura.

A partir de 1993, com o término do mandato da prefeita Luiza Erundina, nenhum informe oficial sobre as investigações das ossadas foi transmitido. Apesar das dificuldades para se chegar ao término das identificações, no local onde encontrava-se a vala foi erguido um memorial de autoria do arquiteto Ricardo Ohtake, inaugurado em 26 de agosto de 1993.

Em 17 de maio de 1995 realizou-se reunião para se exigir a prestação de contas a respeito da pesquisa com finalidade de identificar as ossadas de Perus e demais cemitérios. Soube-se, então, que fragmentos ósseos dos seis militantes mortos, já identificados pelo DML, haviam sido encaminhados para a Alemanha. Enviaram também fragmentos ósseos de esqueletos não identificados à Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, para a extração de DNA. Estabeleceu-se a criação de uma Comissão para garantir a transparência dos trabalhos de investigação do DML. Afiançou-se que as ossadas seriam devolvidas ao cemitério de Perus somente após o término das pesquisas e em condições previamente acertadas com os familiares e, mais uma vez, o DML comprometeu-se a enviar relatório detalhado a respeito da investigação realizada.

Manifestação em frente ao Memorial da Vala de Perus, Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Imagem disponível em: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=97&m=8

Após um ano sem resposta da UNICAMP, os familiares, através da interferência do Secretário da Justiça do Estado de São Paulo Belisário dos Santos Jr., reuniram-se com o reitor daquela universidade José Martins Filho, o Secretário Adjunto da Secretaria da Segurança Pública, Luiz Antônio Alves de Souza, os deputados estaduais Renato Simões e Wagner Lino e Suzana Lisbôa, representante da Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos. Decidiu-se pelo afastamento do Dr. Badan Palhares do processo de investigação das ossadas de Perus; o envio de médicos legistas da Secretaria de Segurança para acompanharem a investigação; a participação de perito internacional como observador; o envio de questionário elaborado pelos familiares com todas as dúvidas a serem explicadas pela reitoria. Badan Palhares foi substituído por José Eduardo Bueno Zappa, e o médico legista Carlos Delmonte foi encaminhado pela Secretaria da Segurança Pública para o DML/UNICAMP. As respostas fornecidas através da Procuradoria Geral da UNICAMP foram evasivas e contraditórias.

Em abril de 1997 os familiares receberam cópias do relatório "Projeto Perus" assinado pelo Dr. Zappa e do ofício do Dr. Carlos Belmonte. Tanto o relatório (primeiro documento oficial do DML/UNICAMP a respeito das ossadas) quanto o ofício do médico legista da Secretaria de Segurança foram evasivos e dedicados a elogiar o Departamento de Medicina Legal.

Em fevereiro de 1998 foi criada uma Comissão Especial para sugerir as providências necessárias à conclusão dos trabalhos de identificação dos mortos e desaparecidos políticos, presidida pelo médico legista Dr. Antenor Chicarino e composta por familiares e representantes das Secretarias da Cultura e da Justiça do Estado de São Paulo. A Comissão, após realizar vistoria nas dependências do DML/UNICAMP, constatou a precariedade do acondicionamento das ossadas e o comprometimento das investigações, pois estas estavam em sacos abertos e sem identificação jogados ao chão sujo de lama, devido à inundação que atingiu o prédio, e com pesados móveis sobre os mesmos. Diante dessa situação, a Comissão indicou a transferência das ossadas para o Instituto Oscar Freire do Departamento de Medicina Legal da USP e a participação de perito internacional como observador, e que tal transferência somente fosse realizada após minuciosa averiguação da real situação das ossadas, quando se estabeleceria um prazo para o término das investigações.

O relatório da Comissão Especial contendo as propostas acima mencionadas foram entregues aos Secretários da Justiça e da Segurança Pública em abril de 1998, sem contudo, receber qualquer resposta das autoridades. Em março de 1999, membros da Comissão Especial extinta realizaram reunião com o atual Secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, Marco Vinícius Petroluzzi, o qual comprometeu-se a responder às soluções propostas em abril de 1998.

Em 31 de março de 1999, a família de Flávio Carvalho Molina propôs Medida Cautelar Incidental com pedido de concessão de liminar para produção de prova, afim de instruir a Ação de Ressarcimento de Danos proposta em 1992 "(...) no sentido de determinar a imediata perícia - exame de DNA nas ossadas que restam na UNICAMP, possivelmente, nos grupos I ou II (inicialmente chamados amostra Camp - 1), conforme relatório "Projeto Perus", fls. 21, mais precisamente as que receberam os números 240 e 57 (fls. 25) (...)" para identificação de seus restos mortais. A ação solicita que caso a UNICAMP não possa realizar tal prova pericial, que as ossadas sejam transferidas para local seguro onde se realize o exame necessário.


Evento marcou os 10 anos da abertura da vala clandestina de Perus. Imagem disponível em: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=95&m=8

Outras valas clandestinas foram abertas. No Rio de Janeiro, em 16 de setembro de 1991, o Grupo Tortura Nunca Mais obteve apoio para exumar 2.100 ossadas de uma vala no cemitério de Ricardo de Albuquerque. Os corpos de mortos e desaparecidos foram enterrados em uma cova rasa e cinco anos depois transferidas para o ossário geral. No início da década de 80 enterraram em uma vala clandestina todos os ossos de pessoas sepultadas como indigentes desde 1971 até 16 de janeiro de 1974.

Reuniu-se, então, uma equipe formada por dois médicos legistas indicados pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ), Gilson Souza Lima e Maria Cristina Menezes, a arqueóloga e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Nancy Vieira, e a antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Eliane Catarino. Em outubro de 1991, a Equipe Argentina de Antropologia Forense representada por Luis Fondebrider, Mercedes Doretti e Silvana Turner realizou um treinamento técnico com a equipe e orientou os trabalhos de catalogação dos ossos. Infelizmente, as ossadas quando transferidas do ossário geral para a vala foram misturadas, formando um conjunto de cerca de 430 mil ossos, entre os quais não se distingue um esqueleto completo. Mesmo assim, vários crânios e outros ossos foram retirados e acondicionados em 17 sacos plásticos para serem examinados.

Em março de 1993, a equipe encerrou o trabalho devido à falta de financiamento e à impossibilidade de sustentá-lo com apenas três pessoas. As ossadas catalogadas foram guardadas no Hospital Geral de Bonsucesso. O local da vala continua sendo resguardado, onde no futuro pretende-se construir um Memorial. Os nomes dos 14 presos políticos enterrados nesta vala são: Ramires Maranhão do Vale e Vitorino Alves Moitinho, ambos desaparecidos; José Bartolomeu Rodrigues da Costa, José Silton Pinheiro, Ranúsia Alves Rodrigues, Almir Custódio de Lima, Getúlio de Oliveira Cabral, José Gomes Teixeira, José Raimundo da Costa, Lourdes Maria Wanderley Pontes, Wilton Ferreira, Mário de Souza Prata e Luís Guilhardini. Outros dois militantes foram sepultados em valas comuns no Rio de Janeiro: no cemitério de Cacuia está Severino Viana Colon e no de Santa Cruz, Roberto Cieto.

No cemitério de Santo Amaro, em Recife (PE), os despojos dos mortos da "Chacina da Chácara São Bento" foram enterrados em uma vala clandestina. Em 1973, o delegado da polícia paulista Sérgio Paranhos Fleury, orientado pelo cabo Anselmo, organizou a ação policial que matou militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) em suposto tiroteio naquela chácara. As pesquisas realizadas na Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95, comprovam que todos foram presos e torturados antes de serem levados para a chácara São Bento. Não foi possível realizar as investigações nessa vala, pois as ossadas não foram separadas em sacos plásticos, o que torna inviável os trabalhos de identificação. Estão enterrados na vala do cemitério de Santo Amaro: Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luís Ferreira de Souza, Jarbas Pereira Marques, Pauline Reichtul e Soledad Barret Viedma. A esposa de José Manoel da Silva conseguiu resgatar seu corpo antes que fosse trasnferido para a vala clandestina, mas somente em março de 1995 pode enterrá-lo em sua cidade natal.


Fonte: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=39&m=8

Sobre o Cemitério Municipal Dom Bosco:
O cemitério de Perus (oficialmente Cemitério Dom Bosco) é uma necrópole localizada na zona norte da cidade de São Paulo, no extremo limite da subprefeitura homônima, próximo à divisa com a cidade de Caieiras. Criado em 1971, tem cerca de 254 mil metros quadrados de extensão.

Durante o período da ditadura militar (1964-1985), o cemitério foi utilizado para o sepultamento clandestino de pessoas mortas pelo aparato repressivo do regime.

Cemitério Municipal do Dom Bosco
Endereço: Estr. do Pinheirinho,860
São Paulo - SP
CEP: 05.215-000
Telefone: 11 3917-0893


Veja também:
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/paginas.php?m=8&te=Vala de Perus

quinta-feira, 18 de março de 2010

Arqueólogos descobrem cemitério de povo misterioso com quase 4 mil anos no norte do Tibete

Simbolismo. Cemitério "Pequeno Rio" encontrado na província de Xinjiang - China. Acredita-se que os mastros sejam símbolos fálicos. Foto: Liu Yu Sheng. Imagem disponível em: http://www.nytimes.com/2010/03/16/science/16archeo.html?pagewanted=1



Por Nicholas Wade. Do 'The New York Times' publicado em 15/03/2010 com o título: “A Host of Mummies, a Forest of Secrets”. Tradução para português: Amy Traduções para o Terra Notícias - Ciência/Pesquisa em 17/03/2010 - 08h46


No meio de um deserto aterrorizante no norte do Tibete, arqueólogos chineses escavaram um extraordinário cemitério. Os ocupantes morreram quase quatro mil anos atrás, mas seus corpos foram bem preservados pelo ar seco. O cemitério fica em território hoje pertencente à província de Xinjiang, noroeste da China, mas os restos encontrados são de pessoas com traços europeus, cabelos castanhos e narizes longos.



Mapa com a localização do "Cemitério Pequeno Rio" no deserto de Taklimakan, China. Imagem disponível em: http://www.nytimes.com/2010/03/16/science/16archeo.html?pagewanted=1


Embora sepultados em um dos maiores desertos do mundo, os corpos foram enterrados em barcos posicionados de cabeça para baixo. E em lugar de lápides que declarem esperanças pias na mercê de um deus quanto a eles, o cemitério exibe uma vigorosa floresta de símbolos fálicos, sinalizando intenso interesse dos moradores locais quanto aos prazeres ou utilidade da procriação.


O povo há muito desaparecido não tem nome, porque sua origem e identidade ainda não desconhecidas. Mas estão surgindo muitas pistas sobre sua proveniência, modo de vida e até mesmo sobre o idioma que falava. Os sepulcros, conhecidos como Pequeno Cemitério Fluvial Número 5, ficam perto do leito seco de um rio na bacia de Tarim, região cercada por inóspitas cadeias de montanhas. A maior parte da bacia é ocupada pelo deserto de Taklimakan, uma terra tão árida que os viajantes posteriores da Estrada da Seda sempre optavam por contorná-lo ao norte ou ao sul.


Nos tempos modernos, a região foi ocupada pelos uigures, uma etnia de fala turca, e nos últimos 50 anos também recebeu migrantes da etnia chinesa dominante, os han. Recentemente surgiram tensões étnicas entre os dois grupos, com conflitos em Urumqi, a capital de Xinjiang. Grande número de antigas múmias - na verdade cadáveres ressecados- foram localizadas nas areias, e se tornaram mais um objeto de disputa entre os uigures e os han.

As cerca de 200 múmias encontradas têm aparência distintamente ocidental, e os uigures, mesmo que só tenham chegado à região no século 10, as alegam como prova de que a província sempre pertenceu a eles. Algumas das múmias, entre as quais uma mulher bem preservada conhecida como "a beldade de Loulan", foram analistas por Li Jin, conhecido geneticista da Universidade Fudan que afirmou em 2008 que o ADN continha marcadores que apontavam para origens no leste ou até mesmo no sul da Ásia.

Múmia com cerca de 3.800 anos encontrada no "Cemitério Rio Pequeno" no deserto de Taklimakan, China. Foto: Wang Da-Gang. Imagem disponível em: http://www.nytimes.com/2010/03/16/science/16archeo.html?pagewanted=1



As múmias do cemitério são as mais antigas já encontradas na bacia de Tarim. Testes de carbono conduzidos pela Universidade de Pequim dataram as mais antigas delas de 3.980 anos atrás. Uma equipe de geneticistas chineses analisou o DNA das múmias.


A despeito das tensões políticas quanto à origem das múmias, os pesquisadores chineses afirmaram em relatório publicado no mês passado pela revista científica BMC Biology que o povo tinha origens mistas, com marcadores genéticos europeus e siberianos, e que provavelmente tinha vindo de fora da China. A equipe trabalhou sob o comando de Hui Zhou, da Universidade Jilin, em Changchou, e o relatório tinha Jin como co-autor.


Todos os homens que foram analisados portavam um cromossomo Y hoje mais comumente encontrado no leste da Europa, centro da Ásia e Sibéria, mas raramente na China. O DNA mitocôndrico, que é transmitido pela linhagem feminina, consistia de uma linhagem da Sibéria e duas comuns na Europa. Já que tanto o cromossomo Y quanto as linhagens de DNA mitocôndrico são antigas, o Dr. Zhu e sua equipe concluíram que as populações europeia e siberiana provavelmente já haviam começado a se combinar antes de chegar à bacia de Tarim, por volta de quatro mil anos atrás.


O cemitério foi redescoberto em 1934 pelo arqueólogo sueco Folke Bergman, mas passou 66 anos ignorado até que uma expedição chinesa voltou a localizá-lo, usando o GPS. Os arqueólogos começaram a escavar o sítio entre 2003 e 2005. Os relatórios dos pesquisadores foram traduzidos e resumidos por Victor Mair, professor de chinês na Universidade da Pensilvânia e especialista na pré-história da bacia de Tarim.


Enquanto os arqueólogos chineses escavavam as cinco camadas de túmulos, conta Mair, encontraram cerca de 200 estacas, cada qual com quatro metros de altura. Muitas tinham lâminas lisas, pintadas de vermelho e negro, como os remos de alguma grande galera que tivesse naufragado por sob as ondas de areia.


Detalhe do "Cemitério Pequeno Rio" no noroeste da China. Foto: Liu Yu Sheng/The New York Times. Imagem disponível em: http://oglobo.globo.com/ciencia/mat/2010/03/16/arqueologos-encontram-cemiterio-de-4-mil-anos-no-norte-do-tibete-916082816.asp e http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL1544521-5603,00.html

E por sob as estacas existiam de fato barcos, de cascos revestidos de couro animal e posicionados de cabeça para baixo. Os corpos que os barcos abrigavam ainda vestiam as roupas com que foram sepultados - toucas de feltro com penas enfeitando as abas, muito parecidas com chapéus montanheses do Tirol. As múmias portavam grandes mantos de lã com borlas, e botas de couro. Uma espécie de Victoria¿s Secret da Idade do Bronze parece ter fornecido as roupas de baixo - tangas sumárias para os homens e saias feitas de fios soltos para as mulheres.



Dentro de cada barco usado como caixão haviam oferendas de sepultamento, entre as quais cestos de palha muito bem trançados, máscaras rituais entalhadas e ramos de efedra, uma erva que pode ter sido usada em rituais ou como medicamento.


Nos caixões femininos, os chineses arqueólogos encontraram um ou mais falos de madeira em tamanho natural, postados sobre ou ao lado dos corpos. Ao observar de novo o formato das estacas de quatro metros que se estendiam da proa dos barcos femininos, os arqueólogos chegaram à conclusão de que se tratava de gigantescos símbolos fálicos.


Os barcos dos homens todos estavam sob estacas em estilo remo. Mas na verdade não era essa sua função, concluíram os arqueólogos chineses: as peças no topo das estacas eram uma representação simbólica de vulvas femininas, o complemento dos símbolos encontrados nos barcos das mulheres. "O cemitério todo estava decorado com símbolos sexuais explícitos", escreveu Mair. Em sua interpretação, a "obsessão com a procriação" refletia a importância que a comunidade atribuía à fertilidade.


Arthur Wolf, antropólogo da Universidade Stanford e especialista em fertilidade em culturas leste asiáticas, disse que as estacas talvez sirvam como marcos de status social, um tema comum nas tumbas e nas estátuas encontradas em cemitérios. ¿Ao que parece o que a maioria das pessoas deseja levar é o seu status, se esse status é motivo de orgulho¿, disse.

Mair disse que a interpretação dos arqueólogos chineses que definiram as estacas como símbolos fálicos é "uma análise crível". A evidente veneração das pessoas sepultadas no local pela procriação pode indicar que estavam interessadas tanto nos prazeres quanto na utilidade do sexo, se levarmos em conta que os dois são difíceis de separar. Mas parecia haver respeito especial pela fertilidade, disse Mair, porque muitas mulheres estavam enterradas em caixões duplos, com oferendas especiais de sepultamento.


Dada a vida em um ambiente hostil, "a mortalidade infantil deve ter sido muito grande, e a necessidade de procriar, especialmente devido à situação isolada em que viviam, muito intensa", disse Mair. Outro possível risco para a fertilidade poderia ter surgido caso a população praticasse procriação consanguínea. "As mulheres capazes de gerar crianças e garantir sua sobrevivência até a idade adulta devem ter sido especialmente reverenciadas", disse Mair.

Corpo de criança mumificado. Um dos 200 escavados no "Cemitério Pequeno Rio" no deserto de Taklimakan, China. Foto: Wang Da-Gang. Imagem disponível em: http://www.nytimes.com/2010/03/16/science/16archeo.html?pagewanted=1


Diversos dos itens identificados no cemitério se assemelham a artefatos ou costumes familiares na Europa, ele apontou. Barcos para sepultamento eram comuns entre os vikings. Saias de fios e símbolos fálicos também foram localizados em locais de sepultamento da era do bronze no norte da Europa.



Não há assentamentos populacionais conhecidos perto do cemitério, e portanto é provável que as pessoas vivessem a alguma distância e chegassem ao cemitério de barco. Não foram encontradas ferramentas para trabalho em madeira no local, o que sustenta a ideia de que as estacas tenham sido entalhadas em outro lugar.



A Bacia de Tarim já era bastante árida quanto os moradores responsáveis pelo cemitério chegaram, quatro mil anos atrás. Eles provavelmente viveram lutando arduamente para sobreviver até que os lagos e rios dos quais dependiam por fim secaram, por volta do ano 400. Sepultamentos acompanhados por objetos como chapéus de feltro e cestos de palha eram comuns na região até dois mil anos atrás.


Não se sabe que idioma os moradores da região falavam, mas Mair acredita que possa ter sido tocariano, uma antiga intrigante na família dos idiomas indoeuropeus. Manuscritos em tocariano foram localizados na bacia de Tarim, onde o idioma era falado entre os anos 500 e 900. A despeito de sua presença no leste, o tocariano parece mais aparentado aos idiomas "centum" da Europa que aos idiomas "satem" da Índia e Irã. A divisão se baseia nas palavra usadas para centena em latim (centum) e sânscrito (satam).


Os moradores da região já estavam presentes dois mil anos antes das primeiras provas quanto ao uso do tocariano, mas "existe uma clara continuidade de cultura", disse Mair, comprovada pelo uso dos chapéus de feltro em sepultamentos, uma tradição preservada até os primeiros séculos depois de Cristo.


Uma exposição sobre as múmias da bacia de Tarim será aberta em 27 de março no Bowers Museum, em Santa Ana, Califórnia - a primeira ocasião em que elas são vistas fora da Ásia.



Fonte:http://noticias.terra.com.br/ciencia/noticias/0,,OI4323110-EI8147,00-Arqueologos+descobrem+cemiterio+de+povo+misterioso+no+Tibete.html

Leia a notícia original, em inglês, no site do "The New York Times":
http://www.nytimes.com/2010/03/16/science/16archeo.html


quinta-feira, 11 de março de 2010

Novos baianos: Histórias do Cemitério dos Ingleses

Imagem disponível em: http://revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2469



Por Bernardo Camara. Artigo publicado no portal da Revista de História da Biblioteca Nacional [ http://revistadehistoria.com.br/ ], Seção "Observatório", em 25/06/2009.



À bordo da nau que margeava o litoral brasileiro, o comerciante Edward Pellew Wilson deslumbrou-se com o que viu. Não pensou duas vezes: decidiu tentar a vida aqui, onde fundou a empresa de navegação Wilson Sons. Médico, John Ligertwood Paterson também se deixou levar pelos ventos tropicais. Inaugurou uma clínica em solo tupiniquim e, entre um paciente e outro da elite, abria as portas para o povo. Carregando no bolso teorias modernas contra epidemias como a febre amarela e a cólera, foi um dos fundadores da Escola Baiana Tropical de Medicina.

Ambos eram ingleses. Aportaram na Bahia ao longo do século XIX. E seus passados se cruzam até hoje... num cemitério. Há quatro anos fuçando lápides e túmulos no Cemitério dos Ingleses da Bahia, a historiadora – inglesa – Sabrina Gledhill se deparou com estas e outras histórias. Casos de conterrâneos que chegaram de mala e cuia a partir da abertura dos portos, em 1808.

A época era propícia. Com poucas chances de ascensão social em território britânico, comerciantes, empresários e toda sorte de viajantes passaram a cogitar viver do lado de cá do Atlântico. A leva de migrantes incluía de caixeiros a engenheiros, todos atrás de novas oportunidades. Mas se a antiga capital brasileira tinha muito a oferecer a esses estrangeiros em vida, na hora da morte eles passavam aperto.

“Na época, não havia cemitérios a céu aberto por aqui, pois os enterros ocorriam dentro das igrejas”, conta Sabrina. “E como o preconceito era mútuo, os católicos não deixariam os protestantes serem enterrados nessas igrejas, nem eles próprios iriam querer isso. Onde, então, eles seriam sepultados?”. A resposta veio em 1811, quando o tal cemitério foi erguido cara a cara com a Baía de Todos os Santos.

O primeiro a descansar em paz chegou dois anos depois. Nascido em Liverpool, aproveitou a onda migratória e pegou o navio para essas bandas, onde viveu às custas do tráfico de escravos. Mas não demorou para que ele dividisse o espaço com naturalistas, diplomáticos e até mulheres e crianças, nem sempre britânicos.

“Era comum os ingleses chegarem ao Brasil trazendo a família. Como também era normal formarem famílias aqui. A lista de sepultamentos inclui cônjuges e filhos brasileiros de ingleses, judeus de várias nacionalidades, norte americanos e outros estrangeiros”, enumera a historiadora. “Era uma questão mais religiosa que nacional”.

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O resgate desse contexto começou por acaso. Há mais de 20 anos morando em Salvador, Sabrina começou a se incomodar com o abandono e degradação do cemitério. Iniciou uma campanha por sua restauração física e acabou vertendo para o lado histórico daqueles sepulcros. “Comecei a me fascinar pela história das pessoas enterradas ali”.

Enquanto o local era reparado, com o patrocínio da fundação baiana Clemente Mariani e apoio da Sociedade São Jorge, a inglesa se uniu a outros especialistas. Juntos, cataram bibliografias sobre o assunto e correram atrás de cópias de testamentos. Encontraram bastante coisa, e parte delas já está na internet. Mas sabem que ainda tem muita história debaixo da terra.

“Tem uma área onde houve um sepultamento em massa de marinheiros, mas ainda não a descobrimos. Muita coisa sumiu”, diz ela, ao avisar que a segunda etapa do projeto será mais voltada para os túmulos. Para isso, o arqueólogo Carlos Etchevarne, da UFBA, e o restaurador José Dirson Argolo integraram o time. “Vamos fazer um levantamento mais completo, incluindo restauro, arqueologia e mapeamento histórico”.

Tudo depois vai parar num livro. Sabrina está animada e não se importa um pingo com fato de sua pesquisa se passar num local que para muitos é inusitado. Se ela prefere se enfurnar numa biblioteca? “Nós, ingleses, não vemos os cemitérios como um lugar macabro, mas de paz e memória. Fazemos até piquenique”.
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