A morte nos faz cair em seu alçapão, / É uma mão que nos agarra / E nunca mais nos solta. / A morte para todos faz capa escura, / E faz da terra uma toalha; / Sem distinção ela nos serve, / Põe os segredos a descoberto, / A morte liberta o escravo, / A morte submete rei e papa / E paga a cada um seu salário, / E devolve ao pobre o que ele perde / E toma do rico o que ele abocanha.
(Hélinand de Froidmont. Os Versos da Morte. Poema do século XII. São Paulo : Ateliê Editorial / Editora Imaginário, 1996. 50, vv. 361-372)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Goiás: Por falta de recursos - cemitérios irregulares são comuns em núcleos rurais

Em núcleos rurais de território goiano, é comum encontrar ossadas enterradas desde o século passado. Escassez de recursos e de médicos que emitissem atestados de óbito estão entre as causas que determinaram o costume.

Por Mara Puljiz. Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense - 26/09/2010 - Seção Cidades - Cemitérios Irregulares. Publicação: 26/09/2010 08:43 Atualização: 26/09/2010 09:36. http://www.correiobraziliense.com.br/



Manhã ensolarada de 22 de agosto de 1967. Em um pedaço de terra da Fazenda Savana, em Tabatinga, zona rural de Planaltina, era enterrado o último morto na região. Tratava-se do famoso José Jonas Monteiro, então dono de boa parte das propriedades. O fazendeiro morreu aos 63 anos, vítima do mal de Chagas, adquirido pela picada de um barbeiro, inseto transmissor da doença. José Jonas foi velado pelos familiares e levado no dia seguinte para a cova, aberta por um parente que tinha corrido na frente do cortejo. Ele descansa em um quadrado de terra batida, à beira de uma estrada de chão, ao lado de pelo menos outros 20 lavradores e fazendeiros que habitavam o local muito antes da inauguração de Brasília, em 1960.

Cemitérios como esse são facilmente encontrados em inúmeras propriedades espalhadas pelos núcleos rurais próximos. Moradores mais antigos revelaram à reportagem do Correio a existência de pelo menos seis deles em fazendas distantes umas das outras. A área, antigamente, pertencia ao município de Formosa (GO), e depois passou a fazer parte de Planaltina do DF. Entre os moradores mais antigos da região, está o lavrador aposentado Joaquim Augusto Vieira, 89 anos, conhecido como Nego Totó. Segundo ele, a pessoa que morria era levada “na cacunda” para o cemitério ou ainda transportada em carroças puxadas por cavalos ou carros de boi.

O dia do sepultamento de José Jonas foi marcado por muita tristeza. Bastante apegado ao pai, Antônio Wilson Monteiro, 63 anos, preferiu ter a imagem dele vivo em sua memória. “Tinha muita gente e eu não fui”, contou. Por sorte, um médico atestou a causa de sua morte, mas naquele tempo, a família ainda não recebia atestado de óbito do ente querido. Não havia naquela época alguém que oficializasse a morte de uma pessoa. Os médicos eram escassos e, para ter acesso a eles, a população precisava percorrer vários quilômetros em trilhas de terra e mato. A viagem podia demorar dias. Quando alguém acordava sem respiração, sem os batimentos e com os olhos esbugalhados, todos tinham a certeza de que não estava mais vivo. “A gente sabia que a pessoa tinha morrido porque depois de uma hora a feição dela já mudava”, relatou Nego Totó.

Primeiros registros
A certidão de óbito só passou a ser fornecida pelo Instituto Médico Legal (IML), no Parque da Cidade, em 1957, quando foram feitos em Brasília os primeiros registros de atividades médico-legais. Nessa época, um laudo de necropsia estava reduzido a meras informações de idade, causa da morte, data e local do óbito. A primeira vítima foi Benedito Xavier da Silva, 45 anos, que morreu em 20 de abril de 1957 no Acampamento do Guará de colapso cardíaco. Benedito foi sepultado em Formosa, mas os procedimentos legais eram feitos em Planaltina ou Luziânia, onde a maioria dos cadáveres eram sepultados. Até 1957, os mortos encontrados além do Córrego Vicente Pires (Núcleo Bandeirante) eram levados para Luziânia (GO) e os do lado do Plano Piloto seguiam para Planaltina, uma vez que ainda não havia polícia judiciária no que seria o DF. “A pessoa morria e não tinha documentação que comprovasse o desaparecimento dela. Morria e ficava por isso mesmo. Era menos um e o enterro ia da valsa (conforme os costumes) de cada um”, contou Antônio Wilson.

Moradores mais distantes que quisessem enterrar algum familiar no cemitério precisavam atravessar o Córrego Jardim. Eles ainda tinham o cuidado de enrolar o cadáver em um pano e fixar tábuas de madeira no fundo, laterais e tampa da cova, para que o corpo não fosse devorado por tatus-canastra.

Tatu-canastra
É o gigante dos tatus e vive em pequenos bandos. É o maior e mais raro dos exemplares vivos dessa espécie, e só ataca quando é inevitável. O tatu-canastra chega a 1,5m do focinho à cauda e pesa 60kg. Esses animais costumam ser comuns em cemitérios por se alimentarem de larvas e animais em decomposição, mas estão ameaçados de extinção.

Personagem da notícia
Nego Totó

Prestes a completar nove décadas de vida, o homem de cabelos brancos, barba bem aparada e olhar firme ainda demonstra lucidez ao falar de seus antepassados. Filho da terra em que habita, Joaquim, ou melhor, Nego Totó, nasceu em uma propriedade de Tabatinga, onde foi criado e vive até hoje. Ele lembra que enterrou pelo menos quatro parentes, entre tios e primos, na região. José Jonas era um primo e foi um deles. Nego Totó foi quem se encarregou de abrir a cova e protegê-la com tábuas para que os tatus não comessem os restos mortais depositados no túmulo. O veterano da zona rural conta que Tabatinga na verdade se chamava Fazenda Vaz e tinha não mais que uma centena de habitantes, que foram ocupando o espaço pouco a pouco. Mulheres grávidas daquela época tinham medo de dar à luz porque, como não havia médicos, muitas morriam durante o parto. “Quando uma grávida morria, a gente corria para enterrar e não contava para ninguém, porque senão as outras mulheres ficavam assustadas e não queriam mais engravidar”, contou Joaquim. Quem era picado por cobra venenosa rezava para sobreviver. O único tratamento para todas as doenças era à base de chá de raízes (MP).


Da roça para o culto aos mortos

Sempre no Dia de Finados, em 2 de novembro, os parentes largam o serviço na roça e saem de casa para acender velas e fazer oração em cima do que restou de cada túmulo. No ano em que o pai morreu, Antônio Wilson resolveu fazer a lápide de cimento para que ficasse marcado o local exato onde ele foi sepultado. A medida deu certo, pois as cruzes de madeira fincadas no cemitério se perderam com o tempo e alguns restos de madeira podre estão encobertos pela terra e pelo mato. Os corpos estão em um terreno que foi desapropriado e passou a ser particular.

Passados 43 anos do último sepultamento, o dono da propriedade e os funcionários decidiram não retirar as cruzes do local e não usá-lo para plantio. “A gente respeita a família. Se eles quiserem cercar o cemitério e cuidar direitinho, podem ficar à vontade”, garantiu o caseiro José Divino de Jesus, 40 anos, morador da região há cerca de 20. “Chega o Dia de Finados e vou lá colocar velas para os mortos”, disse a mulher dele, Vera Pinto Melo de Jesus, 36.

Além do pai, a avó de Antônio Wilson, Maria Augusta Monteiro, também foi enterrada ali, em 1953. Até o fim do ano, ele quer obter autorização para remover a ossada e levar para o Cemitério de Planaltina, no Setor Sul, onde a mãe dele foi enterrada. “Quero colocar todo mundo da família junto”, disse ele.


Grupo de pesquisadores estuda áreas de sepultamento

A origem dos cemitérios rurais ainda é pouco conhecida. Embora seja um assunto que causa medo em muita gente, um grupo de 25 pesquisadores brasileiros se dedica a estudar cemitérios espalhados por todo o mundo. São historiadores, geógrafos, profissionais do turismo, arqueólogos, antropólogos e fotógrafos que integram a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (Abec), criada em 2004 com o objetivo de agrupar pessoas que tenham interesse em pesquisar o cemitério como lugar de memória, de produção artística e de patrimônio cultural. Eles promovem encontros bianuais para trocar experiências de abordagens diferentes sobre o tema. Segundo a presidenta da associação, Maria Elízia Borges, no Brasil, pouco se sabe até hoje sobre os cemitérios rurais. “Sabemos que são muitos espalhados pelas fazendas no interior, mas ainda faltam pesquisadores”, admitiu.

A maior dificuldade dos pesquisadores é encontrar as fazendas onde os mortos eram enterrados, uma vez que nem todos foram cadastrados pelas prefeituras e acabaram sendo esquecidos. Também não há registros de lápides antigas e de como as tumbas eram feitas. Com isso, boa parte da história foi enterrada junto. Muitas cruzes que identificam a presença das ossadas humanas se perderam em meio ao mato ou afundaram na terra. Passadas centenas de anos, muitas famílias naturalmente abandonaram do local de sepultamento.

De acordo com Maria Elízia, que também é professora de história da arte na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG), são comuns os cemitérios nas região de Goiás, em algumas regiões do interior onde antigamente escravos e patrões eram enterrados na mesma terra. “Antigamente era tradição e as pessoas tinham o prazer de serem enterradas na própria fazenda”, informou. O cemitério público surgiu no século 19, mas o rural continuou existindo da mesma forma diante dos costumes e das condições de transporte para os locais apropriados, que eram muito difíceis. Até hoje, não existe levantamento das propriedades onde há gente morta. “Infelizmente ainda somos muito poucos pesquisadores, mas o cemitério é um lugar de memória da cidade e é importante ser registrado. Muito mais que isso, significa reconstruir a memória do cidadão”, avalia Maria Elízia.

Cruz no morro
A produtora rural Elzir da Cunha Leão Falqueto, 41 anos, pouco sabe da história da avó Selvina Xavier de Almeida. Ela morreu no mesmo ano que Elzir ainda estava no ventre de sua mãe, em 1968. Foi enrolada em uma rede de pano e enterrada em uma área que antigamente pertencia ao Núcleo Rural Cooperbrás, mas passou anos depois a fazer parte de Tabatinga. No cemitério, ela foi informada que apenas a ossada de duas pessoas está debaixo do terreno, localizado ao lado de uma torre de telefonia. Na última terça-feira, Elzir levou a reportagem ao local onde Selvina está sepultada. Para chegar, é preciso caminhar em meio ao capim seco. Dois técnicos cuidavam da manutenção da torre de telefonia e ficaram assustados em saber que a poucos metros havia gente enterrada. “Nem sabia. Vou ler a história no jornal”, disse um deles.

Passados 42 anos, a cruz e as pedras colocadas ao redor do túmulo ainda permanecem no lugar. Mesmo sem ter conhecido a avó, em todo Finados a neta acende uma vela em cima do túmulo. Antes de ir embora, Elzir e seu filho, Arthur Alcino Leão Falqueto, 15 anos, rezaram juntos um Pai-Nosso em memória de dona Selvina.

Fonte:http://www.mp.go.gov.br/portalweb/conteudo.jsp?page=1&pageLink=1&conteudo=noticia/075064a32ec292818d4b14e5987c1a68.html

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